sexta-feira, 30 de julho de 2010

CARNAVAL

No carnaval me perco,

me acho,

me deito,

me esborracho

me faço

e me refaço,

no bagaço do meu coração;

no carnaval me canso,

da ilusão.



O carnaval é vida de teatro,

é ato,

é cena,

é papel,

o carnaval é um papel.



O carnaval é cara,

a cara é boa,

no carnaval ressoa a pessoa,

atrás da máscara,

o carnaval é cáscara

sagrada,

agrada e degrada a realidade,

na dicotomia do ser

e do não-ser.

O carnaval é saudade,

é vaidade,

é prazer.



O carnaval é corpo, suando corpo, suando corpo suando, corpo suando corpo suando, corpo.



O carnaval é zoada,

soada em dó,

em todas as cordas,

acordas e ouves os tons:

quem sabe quem sustem os sons,

a tensão,

o tesão das notas ?

Anotas os ouros,

os tesouros,

mas não as mãos

que te afagam,

na calma ou na sofreguidão

e dão-se as mãos,

na folia,

na orgia,

fantasia,

na Bahia ou no Japão,

nada diz não,

nada se nega,

entrega sem condição.



No carnaval sou igual,

fico bom,

fico mau,

sou normal.

Sou tal e qual

uma nau

a deriva,

me cativa a solidão

em meio à turba,

enquanto a turma

me cativa no salão.



O Carnaval é raça,

é caça,

é arruaça,

o carnaval é taça do melhor fel.

O carnaval é véu sobre a desgraça,

entorpece a massa,

na praça, no carrossel.

O carnaval é Bel.



No carnaval sou cio,

sou carne, sou carnal,

sou ousadia,

alegoria do Bem

na morada do Mal,

no carnaval sou animal.



No carnaval sou trio, sou mil, sou multidão,

sou só no meu vazio

total, sou todos, sou fração,

sou mão na sua mão,

sou sozinho, sou só paixão.

Enfim, no carnaval

o real é fantasia,

anestesia

o uso da Razão.



quarta-feira, 28 de julho de 2010

Doce Praga





 

Para Ivete Nicolau, minha esposa,

de sonhos de uma Primavera


O sabonete no Hotel era de erva-doce.

e perfumava toda a cidade.

As ruas, labirinto lógico, sóbrias, tinham um gosto de cais distantes.

Uma moça na esquina, esculpida,

distribuía uma sensualidade

agora permitida,

que circulava, polinizada, nos sobretudos,

escuros como o fumo dos automóveis.


Com ares de mundo a Cidade Pequena

desembocava na ponte Carlos,

onde a arte encobria a tristeza:

a ocupação depois da Ocupação.



Contudo, no oco das igrejas

ressoava uma música pura, isenta.


Nos trens lotados, urbanos,

transitava a mágoa, subterrânea.


As casas iguais, os carros iguais,

afastados, periféricos, esqueciam,

abandonado, o velho caminhão,

de uma guerra indesejada.


Entrincheirado nos bares

sobrevivia o absinto,

das agonias de passados boêmios.

Uma promessa de céu, à tona da terra.


Tinha flores nos bondes, semeando cores,

negadas em passada primavera,

entre os velhos edifícios.
 E o bonde da serra,

 acima da paz dos castelo

 despia em ouro as cúpulas

 e os pináculos,

 descobrindo um verde

 que corria para o horizonte.




O Vlatva só passava, passava, solene,

preso nas curvas,

cheias de histórias.

Um forte cheiro de erva-doce prendeu a saudade.

domingo, 25 de julho de 2010

Ave Maria

A Ave Maria voou

mais do que o vôo

da ave.

E outros serão

os seus céus

e outro o nome

da graça:

Dominus.

Não tão santa

ou benedita:

Eva,

mãe de Deus

In ventri tui.

Pecadores,

nunca será vossa hora

até a morte

Ah! men!

sábado, 24 de julho de 2010

Exorcizando a Segunda

......Porque me sabe a segunda - feira como um fardo,

como um pesado fardo que esmaga e amortece

corpo e alma........



A segunda-feira fincou suas raízes negras,

profundas, tenebrosas,

sobre o espírito das coisas.

Amealhou o peso guardado

no mais fundo das consciências,

as culpas, musguentas,

assentadas por anos,

domingo após domingo.

As culpas que escorrem dos meus pés

como uma gosma espessa

e fica grudada nos meus sapatos

até a terça,

quando ressecada,

se disfarça em graxa

e asa

de uma nova semana,

para retornar

com ímpeto de esposa ciumenta,

ressentida,

assim que desçam pesadas

as pálpebras de um passado e inocente domingo.



Sinto, ainda deitado na minha cama de preguiça,

o horror que se descortina

na perspectiva nevoenta de um dia

que já se insinua longo e ácido,

como as noites insones.

E faço-me suficientemente covarde

para, de novo,

enovelar-me

entre tépidos lençóis

na busca frenética,

de alcançar em rápida fuga,

as raias de uma

tão próxima

quanto saudosa véspera.




Paradoxalmente encantado,

como as mariposas à procura do lume,

às vezes a antecipo, oh segunda,

numa vesperal sorumbática

de um ainda domingo,

de músculos exaustos,

de pesos sobre a fronte,

de mórbidos humores;

ora me apercebo

em meio ao processo autodestrutivo

e a tempo me corrijo:

perfilo-me como a tropa madrugada,

espanto o corvo agourento da angústia

pousado entre meus olhos,

espano da pele o medo,

como o cão às gotas da chuva.

E volto a existir, como os mortais,

dos anseios da carne e da alma,

do pulsar fremente das veias,

da tontura dos vinhos.



Pesa-me o destino quando ela,

teimosa e irreverente,

como um assalto,

talvez por perceber-se estranha

e rejeitada,

simula-se deusa sedutora

e nua, abraça-me em loucura o colo

e estende-se incômoda e dissimulada

sobre minhas estreitadas espáduas,

num dormir profundo e desgastado

de bêbado.

Enfim, poderosa,

prolonga, dia após dia,

tão ansiada despedida,

semana a fora,

sem cerimônia,

portando cínica e orgulhosa,

uma bandeira das cinzas

de uma glória vã

e de razões estúpidas,

desencravada

do topo da montanha de ilusões

e euforias

de um fim de semana.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O vinho


Evola seu corpo pleno de mistérios, oh! vinho!

Que a língua lhe possa libertar, quantos sabores!

E ao tocar-nos o céu da boca

nos transcenda ao nosso merecido céu.

A boca iluminada dos seus fulgores,

lanças de ouro lhe transpassem o paladar;

e sobre papilas inebriadas passeie loucas volutas

de gozo e de luz!

Santo Baco, entre nós se insinue,

inundando de prazeres a Razão, mais pura

e eleve em sublime embriaguez

nossa língua nua

aos céus das lícitas loucuras!

Traga de longe o xisto, o húmus, o couro.

Traga a fruta dormida no sereno

e o amarelo-sol do meio dia.

Traga a fonte escura que lhe banha os pés

e a vertente íngreme da montanha!

Traga enfim o sagrado trago

do suor do Homem que o faz nascer!

domingo, 11 de julho de 2010

Os cinco sentidos da poesia

                                                       à Mario Quintana


Leio Quintana diariamente

como se cotidiana a mente

precisasse de um comprimido

pra combater a cegueira.


Leio em voz alta a primeira

poesia

e terapia

para os males do ouvido,

entupido pelo fato

ou fatos do dia-a-dia.



Então percebo apagado

e embotado o olfato

que cheira as modas da mídia;

Outro poema socorre

recuperando o nasal,



mas, sofro de outro mal:

me falta agora ter gosto

no meio deste desgosto

de dimensão nacional.

Viro a pagina e lá está

uma poção exemplar

pros males do paladar,

resgatando o doce e o sal.



O tato não mais resiste,

um fato me deixa triste:

não posso sentir os dedos.



O que fazer dos meus medos

no meio da selva insana?

A última página salva

numa lista intitulada:

outras obras do Quintana.













Pouso da Palavra

À Damario Dacruz, poeta maior,
criador do espaço Pouso da Palavra,
em Cachoeira - Ba (post morten)


Suave

Pousou na minha fronte

A pomba desatada

 
Sutil

Aninhou seu frágil corpo

Entre as minhas toscas idéias

Inaugurando às cegas

A luz e o negrume

 
Distraída

Sorriu comigo, de mim

Despertando uma menina alegria

entre meus escuros medos

 
Ousada

Cravou meu coração

Com garras certeiras, agudas

 
E virou canção.

Crepe de Rúcula

(crepe aberto de mussarela de búfala, tomate seco e rúcula)



 
É base o trigo

massa de arrimo,

carne universal,

corpo da terra;

da sólida argamassa

me fiz

e todos se fizeram;

ao tornar-se disco,

dele apossou-se o meu espírito

e viajei lonjuras

na sua delicadeza

de sabores indecifráveis,

da finura do seu perfil,

da sensação crocante

nos meus dentes

quando enfim lhe incorporo

alma e matéria

a transformar-se em matéria e alma

e a seguir

a eterna roda do mundo.

Trigo tu és roda

e em volta de ti

se reúnem os homens,

que ao longo dos escuros séculos,

anseiam se encontrar.



 

Alva mozzarella,

concedida em fartas doses,

como flocos de algodão,

que lembram carneirinhos em pastagens.

E já quase posso senti-los

nas pradarias

a gastar seus pequeninos passos

em todas as direções;

já quase posso percebê-los

como macio afeto

na minha pele,

carente de partos

carente de inícios;

já quase posso gostá-la

como leite

de que és feita

e és fartamente doada.

Queijo regiamente servido

por sobre a pasta,

semeadura generosa

da sua serragem branca

como as nuvens,

que flutuam

nos altiplanos do céu

em que ora habito.



 
Encarnado moital,

sobre a neve branca.

Dos tomates

a quem se tirou a umidade,

sorve-se o gosto exótico,

reservado,

a quem da boca

fez laboratório,

do paladar santuário

e da elevação do espírito,

a antítese da árdua realidade.

Tempero concreto

espraiado, sem cuidados, sobre o jardim;

o homem desavisado,

perdido sobre o próprio alimento,

aplaude o equilíbrio

que lhe faz o doce e o acre

na sua essência,

enquanto refuta

a própria ambigüidade:

Do seu sangue, tinto,

explodem profanas lembranças

de impuros amores,

de despudorados carmins,

e a rubra borboleta,

liberta dos sentidos,

recupera no céu da boca

sua vocação frutal,

olvidada entre verduras.



 
Verde-Flor do meu canteiro,

seu sabor de terra

me sabe a mato

e me leva em pensamento

a passadas angústias,

atávicas,

e sou folha

e vivo nela,

nas suas nervuras

e nos seus verdumes;

e nela floresço

no passar dos tempos.

O homem vegetal

retornado a sua natureza,

indígena,

amassando com pés puros

a pureza do verde;

mastigando a própria vida

com o leve amargor

da rúcula.

Riqueza exposta,

sobre a mesa farta dos homens,

dos seus regalos...

dos seus banquetes...

dos seus pecados...





sábado, 10 de julho de 2010

Retratando o Tempo

O retrato pára o tempo
A foto, para outro tempo...


Há tempo para um retrato?
Para a foto menos tempo


Passou o tempo do retrato
Retrato e fotos são passatempos


O retrato não parou no tempo
A foto de um outro tempo tem novo tempo


Há tempos não vejo um retrato
Há fotos em que vejo o tempo


Retratos viram fotos
Em tempo: fotos não viram os retratos


Retrato o tempo, não o fotógrafo
Fotografo o tempo, não apenas o retrato