Meus Contos

DOMINGOS, DE ÓCIOS E OFICIOS



A sola grosseira e fulva do pé do negro sobrava pendente pra fora da rede. Na rala sombra do coqueiro, embalava Domingos sua preguiça de quintal. No céu da tarde dormitava um sol indeciso entre nuvens indecisas. O vento, mareado, atropelava os muros e animava a dança dos barcos no porto abandonado. Esse era o único movimento que parecia possível naquela beirada do mundo. A tudo e a todos foi dado o direito de nada fazer.
Maresia.
Um barco ou outro que saía, logo retornava a obedecer à ordem universal que tudo estancava, emperrando as catracas do mundo.
Mingo, era filho, era dengo, era bem-querer; Mingão, tinha tempos, tinha ritmos, os seus ritmos, cadenciados pelas suas próprias certezas, internas, secretas. Agia de moto próprio, a razão embutida, dissimulada; Mingau, a malemolencia dos gestos, da fala, a ginga, a tolerância, a manha do negro; Domingão, o bote certeiro, a astúcia, a decisão, a vitória,.
Ali reunidas, vadias, enfunando os panos da rede de balanço, as várias faces do homem deixavam a vida passar.
Ócio, um estado de espírito prenhe de dubiedades: uma força motriz, uma incubadora de potencialidades, uma perda de tempo ou uma oficina de capacidades nascentes?
Bela, Anabela, consumida, bela, pragmática, desdenhando incursões filosóficas a respeito do ócio em meio à penosa lide doméstica, enxugando as mãos calosas na barra do vestido, na boca a palavra-faca, renegava no homem um ócio de invisíveis horizontes. Jovem, cobiçada, escolhera a dedo o melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destemido. Não queria seu homem um joão-molenga, a vida na rede matando o tempo. Queria ver seu corpo negro-luzidio reteso na linha, na rede do peixe. Um deus de betume emerso do capelo das ondas, senhor das marés, os músculos molhados, poderosos, desentranhando a pesca dos abismos. Queria o macho robusto, potente, amoroso, desencavando a ferros os seus desejos, falando a linguagem do corpo. Um homem potente, dominando o seu mundo.
- Levanta hôme, vai cuidar da vida ...!!
A vida tinha um sabor diferente a cada maré, a cada vento, a cada lua. Os homens obedeciam a ela sem refutar. Entretanto, dois padrões se revezavam nas suas rotinas, não tinha muito que inventar. A rede, a cerveja, o dominó, o samba e o chamego, em terra. No mar : o duro oficio do peixe.
Na vida do porto o tempo tem uma dimensão equívoca: perde-se a vida na pachorra da ociosidade em horas intermináveis, ganha-se a vida em minutos numa redada curta na maré piscosa, e de repente perde-se a vida, em segundos, num súbito e inesperado vendaval.
Domingos pousou a ponta do pé no chão. Arriscou meio-ôlho na luminosidade fusca da tarde, sentiu o clima, avaliou a pressão da mulher.
Uma Bela arisca, pré-erupção, visitando com crescente freqüência o seu estado quiçá letárgico, o fez mover-se em lenta rotação sobre o seu próprio eixo, como fazem os astros, logrando apenas muda-lo de lado.
Uma nova investida mais intempestiva, derramou uma abundante lava gelada, que ele logo reconheceu como água, num súbito despertar sem mágoas.
Por força do hábito, antenados os sentidos, o pescador mal acordado avaliou as condições do tempo, aguçando as próprias sensibilidades, como não fariam os meteorologistas com seus complexos instrumentos. Concluiu : “Tempo ruim com possibilidades de refregas e bruscas mudanças dos ventos no litoral”. Eis a certeira conclusão.

Maré viva, eriçada, inquieta, as águas dançavam um bailado de pontas. Os ventos, levianos, escolhendo novos caminhos a cada instante, às vezes cortando de lado, às vezes de revés, estapeavam as ondas e as palmas. O céu disfarçava uma ira nebulosa de nimbos desfeitos e refeitos, enquanto mordiscava levemente um horizonte dúbio.
O homem, no entanto, tinha certeza. Vinha temporal !
Sofrida decisão de lançar-se ao mar contra todas as suas convicções, apenas para satisfazer os caprichos de uma mulher.
Mas era Bela, sua doce Bela dos olhos verde-água, por onde às vezes navegava em mares imprecisos, mas onde encontrava sempre o porto seguro do seu amor. Era Belinha, seu jeito de menina camuflando uma acabada sensualidade, aos poucos revelada em deleitosas noitadas. Era Bel, amiga, confidente, o ombro macio onde derramava suas incertezas. Era enfim a Anabela, a sua força , o seu esteio.
Ainda não se ouviam os primeiros acordes da Ave Maria, quando Domingos tomou a decisão de aventurar-se às águas, barra a fora, embora ainda mastigando o sabor da dúvida.
O mau tempo lá fora, entretanto, definindo os termos de um grandioso duelo, apenas lhe confirmava a certeza e o destemor.
Um Domingos audaz, cavalgando a proa de um barco frágil, sua silhueta cortando-se contra a doida ventania, encarando sereno um furioso mar, enfrentando-o como se enfrentam dois mistérios, confrontando suas grandezas, comparando suas inconstâncias, cotejando suas profundezas e seus desconhecidos.
A boca da noite, pintando seus vários tons de cinza nos temores de quem ficou em terra, reservava um imponente espetáculo, testemunhado apenas pelos próprios atores.
No mar alto, céu e mar fechavam sua profunda bocarra engolindo o homem e seu barco, numa dança macabra, em meio a um mar tormentoso e enlouquecido.
Domingos usava toda sua tarimba de marinheiro, toda sua perícia, toda a manha obtida na lida da pesca. O pescador valia-se de toda sua coragem, toda sua garra, toda sua crença.
A peleja assumia dimensões de epopéia. Os atores, feições míticas. O cenário, um porte de tragédia.
Nem quando desabou aquela pesada e gelada chuva que lhe ricocheteava o corpo musculoso e ágil, nem quando desapareceram dos horizontes os sinais da terra e fugia-lhe dos pés a macia escora das ondas, teve o homem a dúvida do seu momento. Ali estava, inteiro, vivendo intensamente o seu mundo, o mundo que escolhera, o trabalho que lhe dignificara, o amor que lhe enternecera, enfim a vida para a qual se preparara e talvez a morte que corajosamente aprendera a esperar.
Uma onda de revessa lhe abalroou a popa, obrigando-o a emproar o barco e navegar de frente, trocando o passo da estranha dança. Uma outra, inesperada, lavou de espuma o convés, como a querer insinuar-se em pretensa intimidade. Uma terceira, nascida do nada, virou a embarcação, jogando o homem ao mar.
A noite escura e fria invadiu a terra com lágrimas e ais. O dia nasceu com falas sobre homens e ócios!


O ASTRONAUTA



João nasceu na Terra. A bem dizer, na lua. Cheia.
Sua mãe sentiu as dores quando atravessava a praça. Nada a demoveu dali, até que berrasse o rebento.
A primeira luz foi um mosaico tremulo, feito de luz pálida, de folhas e de vento. Depois vieram outras e muitas outras.
Mas, só uma realmente lhe iluminou: a luz da Lua. A clara luz da Lua. A enigmática luz da Lua.
Começou insidiosa por lamber-lhe a pele, aos poucos lhe invadiu os olhos e finalmente penetrou-lhe os sonhos, bem fundos, bem fundos, até onde os sonhos por não ter mais o que sonhar, sonham loucuras.
João menino cresceu tropeçando na Lua. Arrebatado no vai-vem do fole das suas fases, na ilusão dos seus “mares”, nos cinzas das suas “montanhas”. Um pequeno lunático!
Galileu caipira, adolesceu de olhos grudados no céu, alheado os 27 dias do mês lunar, a espreitar eclipses e adivinhar elípticas.
Com ajuda, aprendeu áreas e distancias, conheceu limites e velocidades e terminou por entrecruzar todos os traços da bola. A lua.
Tinha-a na palma da mão e então, certa noite, lhe deu ganas de ter a palma da mão nela. A lua.
O fogo da idéia viajou a jato as suas veias, orbitou acima das suas dúvidas e gravitou em torno do seu bom-senso, antes de aterrissar na idéia louca de construir um foguete.
Foguetes, cálculos, projetos, querosenes e gasolinas, fuçou todas as tecnologias cósmicas. Escarafunchou bibliotecas, esquadrinhou planetários, escaneou os céus noite e dia.
Gerou uma idéia, pariu um projeto, criou um monstro de latas e tubos e apelidou-se astronauta.
Sua equipe assentou a geringonça no cocuruto de um morrote, o mais alto, o mais perto do céu e ultimou os procedimentos.
Consultou meteorologias e horóscopos. Equacionou luas e marés. Definiu data, precisou hora. Despediu-se das gentes.
Era véspera.
Estavam ali, numa cisma muda, os dois se encarando, como dois abismos, numa mão dupla de dúvidas e questionamentos, João e a Lua, num doloroso plenilúnio.
Era dia. Era hora.
A pequena multidão viu entrar naquele estranho gafanhoto metálico um escafandrista do espaço, que acenava convicto da sua pretensa proeza.
No zero de uma contagem regressiva, zoou um apito fino que logo ficou rouco e ainda mais rouco e finalmente todos puderam assistir, atônitos, a uma estrondosa explosão em meio a uma imensa bola de fogo e fumaça, que se viu e ouviu à distância.
Ninguém nunca encontrou a caixa preta da sua ilusão, nenhum jornal noticiou a sua esfumaçada esperança ou nenhum amigo jamais lhe identificou um traço de loucura diferente do próprio.
Foi um verdadeiro astronauta............




.....Y TODO A MÉDIA LUZ.........


“Corrientes, três quatro ocho....”
(tango de Carlos Cesar Lenzl - Edgardo Donato)


Ela atravessou a meia-luz da sala numa diagonal cinematográfica até o balcão do bar americano. Nada podia esconder por baixo do seu vestido vermelho colante, mais curto a cada passo. Oscilando sobre saltos longos e finos, seu corpo recortava em sinuosas, o espaço vazio, cheio de olhos. Num banco de pernas longas cruzou as suas, sem deixar transparecer o seu íntimo. Acendeu seu long-size na cortesia do barman e soprou para o mundo uma fumaça azulada com cheiro de batom vermelho. Provocava no ar uma tensão de acontecimento iminente, atraindo para si o momento de todos, escondidos nas silhuetas, sentados nas mesas ao redor. Tal espiral de magnetismo prendia-se, entretanto, meramente ao seu corpo físico. Sua mente, embotada de ciúmes e incertezas, pairava absorta e distante daquela circunstancia. Pensava nele e no que vale ter um homem sempre distante, mesmo estando perto. Lembrava amores passados e não conseguia antever o amanhã, compartilhando com outras o seu homem. Na verdade, nunca tivera coragem de expor seu coração, oferecendo e exigindo-lhe fidelidade. Tinha-o inteiro em sonhos, mas nunca arriscara tal proposta, por medo de perdê-lo. No entanto, agora estava disposta. Não admitiria mais a dubiedade ou a traição. Pensamentos drásticos invadiam sua aparente serenidade, sugando-a repentinamente daquela simulada calma.
Seria a única, ou preferiria a desgraça e a morte como amantes.
Esperava longa e ansiosamente, mas, talvez amasse mais a sua ausência.
Pediu um drink. Sorveu um gole cheio de mágoa.
Por debaixo do balcão, um mini-system soprava melancólico, um oportuno Gardel, emoldurando a cena: “Y todo a media luz, crepusculo interior..Que suave terciopelo, la media luz de amor”....
Ele chegou com ares de dono. No chapéu Panamá, comprado em prestações, trazia uma pena multicolorida, lateral e inclinada. Os vincos da calça de linho branco denunciavam outras paradas, tão anteriores quanto suspeitas, que lhe garantiam a pretensa masculinidade.
Como um cego pediu um conhaque. Bebeu o primeiro gole com a urgência de um naufrago.
Só depois do terceiro, olhou em volta. Descobriu uma mulher na sombra ao lado. Adaptando-se ao lusco-fusco da sala, sua visão pode reconhecer os recortes sensuais de um corpo, enquanto seus nervos sentiam os arrepios que nasciam da energia irradiada da pele daquela mulher. A rigor, a sua mulher, a mulher que o movia, em cujo coração esperava encontrar a segura ancoragem e o perdão e em cujo corpo desejava despejar a vazão das suas angústias. Não mais uma ou apenas uma. Ela, a que elegera o seu coração marinheiro, entre múltiplos portos.
Seu orgulho de macho, todavia, o impedia de demonstrar claramente seus sentimentos, forçando-o a dissimulá-los sob um ar de falsa suficiência e liberdade. Esta atitude, seguramente assim não sendo percebida, acabava por lhe imprimir um charme especial de fogoso garanhão.
Com ânsia estudada tomou-lhe as mãos, levando-a a procurar seus lábios sobre um fino bigode. De pé dançaram uma dança estranha, quase parados entre a lânguida melodia e a noite-fantasma, que espreitava do fundo da sala.
Antes mesmo que terminasse a música, sumiram do ambiente, desaparecendo no estreito corredor de quartos numerados.
Um desengonçado ascensor, confundindo com os seus os lascivos gemidos dos apressados amantes, levou-lhes ao 2º piso.
Na penumbra azulada do pequeno quarto, “porque que es un brujo, el amor”, despiram-se e amaram-se, violentamente.
O amor teve um sabor de fome e ansiedade.
Depois do amor, tudo tinha um ar de fuga e negação. A súbita satisfação dos instintos refreados, como que dividindo bruscamente o tempo em dois tempos, criava a cada segundo um caminho de volta a realidade anterior. A fumaça de um único cigarro, reta, denunciava uma falsa quietude. Vibrava no ar certa tensão muda, dilacerando o instante.
A posse e o ciúme nunca foram bons amigos. Tampouco os falsos papéis e a dissimulação jamais favoreceram a tolerância e a compreensão.
Agora, as notas fugidas do tango triste, alcançaram o aposento, emprestando uma feição melancólica ao ambiente: “un telefon que contesta, uma fonola que llora”.
O cheiro acre-doce da carne e do suor, pairando culposamente no ar tépido e saturado, embriagava de remorsos os dois amantes. Os olhares vagando longínquos e vazios, alheios ao momento, evitavam o fatal encontro. Súbitos arfares e silvos por entre os dentes cerrados, denunciavam uma pretensa explosão. Músculos tensos crispavam dedos e lábios. Tardios rangidos de cama e amassos no lençol, como a negar os anteriores, revezavam-se nervosamente com o movimento dos corpos. O farol de um automóvel que passava na rua, sangrando um vitral da janela, manchou de vermelho a tristeza do azul.
Dois vultos tensos movimentaram-se mecanicamente em direções opostas, no espaço do quarto.
Ela levantou-se bruscamente, abrindo com estrépito a gaveta do criado-mudo. Ansiosa tateou com uma mão urgente, um objeto intencional e previamente guardado.
Ele, por sua vez, antecipando-se ao gesto suspeito, encontrou entre suas roupas abandonadas ao lado da cama de amor, um punhal de prata que, velozmente e sem muito pensar, o cravou entre as omoplatas flácidas do delicado corpo, indefesamente nu, transpassando-lhe o coração.
Esvaindo-se rapidamente, o corpo da mulher tombou ao solo, sobre o angustiante arrependimento do seu amante e algoz.
Escorrendo-lhe da frágil espádua, um pequeno filete vermelho, procurava denunciador, a palma de sua mão pálida, descobrindo o pequeno envelope, com o bilhete que lhe abria a alma.
Como testemunha apenas um mudo gato de porcelana “....pa’ que non maulle, al amor...”



DAVI E GOLIAS




Davi vivia em cálculos. Esquadriava o chão de canto a canto, computava velocidades, perseguia bissetrizes e hipotenusas. Com unhas sujas tracejava o piso limoso e projetava nas paredes enegrecidas, assaltos relâmpagos e maquiavélicas estratégias.
Naquela cela úmida, já de quatro, mimetizando, escarificando os joelhos na juntura das pedras, Davi o caçador, às avessas a história, acoitava um minúsculo Golias, apelido do rato, que lhe servia de motor e combustível da razão, naquele cativeiro.
Num zip zap veloz, irrequieto, calculista, o rato, uma tensão alerta em cada músculo, todo ouvidos, todo rabo, riscava seu cinza em perfeitas diagonais, em território alheio, em busca da comida. Surpreendido, disparava, acompanhando retas e adivinhando ângulos num correr ladrão de volta à toca.
Gordo e muito branco saía Davi por onde entrava a luz, em parcas réstias, diariamente, pontualmente; em sonhos circulava os verdes, as águas, visitava amores, partilhava esquinas, ouvia insuspeitas canções; escapava e voltava pelo redondo dos olhos baços, novamente vívidos apenas pela ânsia da caça, que espreitava, fugindo do Sol, do seu canto.
O rato em sua natureza de camundongo, arguto, enxuto na meta, tinha olhos e patas a serviço de um naco de pão, uma casca que fosse, um papel, um sabão.
Duas prisões, em paralelas, buscando a licitude. Um sonho de santo, um sonho de hamster.
Meditava Davi, no profundo de uma consciência atávica, sobre o ser do rato. Numa expressão catatônica, sob olhos empapuçados, concentrava sua imaginação no sem-fim da toca do bicho, esquecido do seu bicho e da sua toca. Percebia o predomínio do instinto do outro, sem aceitar o seu próprio instinto-caçador. Nada do existir próprio do rato identificava-se com um traço seu. Aceitava as atitudes dele como se estivessem implícitas na carne própria do rato e dela fizessem parte, o animal e suas realidades, um só bloco, indivisível. Queria um continuum, em circulo, onde não houvesse inicio e fim, no rato. Entretanto, tentava criar uma força abstrata, um magnetismo, uma hipnose entre as duas mentes, para atrair o safado. Mais ainda, sonhava forjar em aguda concentração mental, um movimento de partículas entre o ser-do-homem e o ser-do-rato, de forma que uma estreita conexão causal os ligasse ad infinitum.
E como acreditasse ser a experiência, o único guia no raciocínio sobre as questões de fato e apostasse na conjunção constante entre eventos, calcado em fatos anteriores, esperava pegar a caça., Montou, com barbante, uma isca de queijo.
Agora é só atrair o murganho com o que ele tem de animal, depois, ser ágil no dominar seu pequeno corpo.
Golias, o animalejo, alheio a tais mesmerismos, apenas sendo, no escuro da cava, vivia sua simples vida de covil. Catito na catita, passeava seu pequeno corpo em pequenos e nervosos movimentos no fundo do seu buraco, ora num canto, ora no outro, roçava seus bigodes tesos, antenados, nas paredes rústicas, esfregava as patas, uma na outra,... agora no focinho...um passo para traz , subitamente medroso...o rabo curvo sentindo a altura oscilante do teto....cruza um feixe de luz...aproxima-se da entrada da toca .... sente um cheiro doce...
Um Davi imóvel, encistado na empresa, alheado no objetivo, a respiração guardada a lhe causar uma leve cianose no lábio crispado, só rato, fazendo razão de vida, o rato mais-do-que-motivo, trazia, como extensão do próprio braço, a armadilha.
Um Davi judeu contra o minúsculo filisteu.
Golias, pequenamente indefeso, pré-aprisionado pelo aroma sedutor do queijo ou pela rogatória de um destino de larápio, ainda vacilou no bastidor da gruta, na indecisão de uma gula cautelosa. Momentaneamente salvo por experiências anteriores, ainda restou por minutos, o rato no buraco. Por três vezes ricocheteou na pequena cachola a sua vontade do queijo.
Ainda arriscou dois olhetes espertos na direção da luz da cela e por fim, vencido pela racionalização própria dos famintos, aguçou o faro com a ponta da fuça e disparou certeiro e convicto em direção à cilada.
O homem, alerta, um só nervo no intento da presa, iça com arte a isca, trazendo cativo o pequeno gatuno.
Numa tosca panela, sobre uma trempe improvisada num canto da cela, foi ratificada a História: Golias foi vencido.
Davi comeu o rato.