Minha Crônicas

LUA CHEIA


Naquela sexta-feira saí à deriva, quando uma lua cheia me bateu na cabeça. Pensei quão feliz era um homem que experimenta, inconscientemente, estar tão livre, dessa espécie de liberdade. O vento fresco, marítimo, também parecia perdido em meio á noite de parcas estrelas. Uma leve tontura me guiava os passos, ainda sólidos.
Juliana na cabeça e o perfume que ela não me deu. Segui o mundo, segui o ritmo. As luzes que ao longe piscavam definiam uma orla côncava, onde a vida sabia à sonho de náufrago.
Ela ainda não me amava, daquele amor desgarrado. Dissera “gosto”, fugindo da fumaça espessa do meu cigarro, exigente, opressivo.
Hoje não vejo Juliana no claro do luar. Ela roda, incólume, nos vaporosos pensamentos, soltos, a voltear cirandas de lembranças e saudades.
Tenho sob pés a cidade, que passa rápida, que passa lenta, que passa... As ruas se sucedem iluminadas como nos fliperamas, sonoras como nos filmes hollywoodianos, inesperadas como nos autódromos. As ruas que sabidamente são minhas, porque as tenho nos olhos e no coração. As ruas que ganhei dia-a dia, noite-a-noite de todos os passantes, distraídos, indiferentes, que não as sentiram, não as compreenderam, não as experimentaram do gosto ácido das urinas, da doçura inquieta do álcool, da secura morna dos fumos.
Torno a antegozar da loucura, da liberdade da loucura em meio à horda infinda que vagueia indisciplinada pelas vias e pelas esquinas. Agora a tontura está nos gestos, está nos olhos, está no sexo, está nos passos de quem passa. Amei as praças, da convivência, do remanso das almas, da exibição. A praça é narcísea, é redonda, é mambembe, é humana. É mais humana que as ruas, por onde corre, por onde esconde, por onde escorre até a próxima praça.
Naquela sexta-feira perdi a bússola. A lua me tragou com hálito de infinito. Um vento morno, urbano, encanou numa viela, se afastando das estrelas. Não duvidei quando me vi fisgado pelo seu perfume, que não lhe dei. Juliana seguia o ritmo liberto das ruas. Parecia tão livre, jamais me amaria, de correntes, de anéis, de fumaça de cigarros. Sua trajetória, tão ampla, tão aberta, tão convexa, no entanto, tinha uma rota traçada, um porto marcado. Rodava cirandas tangíveis, concêntricas.
Súbito, sugada pelo vácuo insano da urbe, abandonou amarras. Correndo, ganhou as ruas que nunca lhe viram. Decifrava cada esquina, como a um enigma. Até sentir o aroma das urinas, a doçura dos fumos e a secura do álcool. As ruas passavam inesperadas como nos jogos, sonoras como nos filmes e iluminadas como nas corridas. Amou o sexo e a tontura de quem passa. Experimentou o inusitado remoinho das turbas e a prisão louca da liberdade, em meio às levas de passantes. Polarizada, achou-os concentrados, atentos, conscientes, amantes tácteis das ruas.
Parada na praça sentiu minha vacilante presença. Vaidosa exibiu formas sutis. Disse pausadamente: te gosto. Nunca amarei, nunca disse, mas cumpriu.
Andei loucos passos, perdidos, disrítmicos, agora flácidos.
Percorri ruas vazias, praças estanques, inanimadas. O vento estéril não me trouxe o aroma das multidões, nem senti na pele de nervos descapados, a agonia das lícitas loucuras. Surpreendi-me Narciso, inebriado no perfume, que sempre me dei. Invadi os espaços dos cinemas, dos jogos e das corridas com sentimentos recôncavos, como um náufrago. A fumaça dos meus cigarros já não alcançava as estrelas, nem dançava cirandas como outrora.
Nesta sexta-feira perdi o rumo. Uma nuvem escura escondeu a lua cheia.



SÃO JORGE DO MEU POVO



Circulo de luz alva furando a noite escura. Lua cheia.
Cheia da desesperança deste povo mais que povo, sofrido, pisado, mirrado, violentado, moído, traído, descompreendido.
Lua cheia de ódio, de fome, de peste, de tudo o que é ruim.
Gorda, pálida, flutuando à toa na louça do espaço, esta lua mais que lua, estampa na cara virada pro Sol , um S. Jorge cavaleiro e sua lança e um vencido dragão.
O lume que desce do céu clareia um país: imenso remanso de um futuro eternamente prometido e nunca vindo. Sua cara, já feia, não olha mais para frente, faz careta no espelho do horizonte, convexo, e se assusta com sua própria metáfora distorcida.
Valei-me S. Jorge, valei-me!!
Padroeiro, poderoso, herói do povo, último redentor, traz na face e no gesto a dignidade que seu povo já esqueceu.
Teimoso D. Quixote tupiniquim perdido do Sancho Pança, lança em riste, insiste todo santo dia, toda santa noite, toda santa lua, todo santo dragão, o que seu povo fatigado já não insiste.
Onde os profetas desta terra promitente? Onde os milagrosos desígnios? Onde o radiante futuro?
Chuva de balas sobre suas cidades, chuva de desmandos sob os seus governos.
Um mar de miséria afoga os seus povos, um mar de corrupção salva os seus algozes!?!
Façam-se ofertas de livros à mancheia e mande o povo pensar....
- Fale, meu santo, uma palavra mágica, uma simpatia!
- Diga, meu rei, com sua palavra santa, um desafogo pra essa ziquizira!
Aonde suas gentes precisam de santo canonizado? Santo cassado lhe é mais próprio, cassados que são de sua cidadania.
- Ogunhê meu Ogum, valente cavaleiro das planícies capadócias, protetor das virgens raparigas;
- Oquê-arô meu Oxossi, salve nossas ariscas moçoilas, caças prenhes da miséria e da ignorância.
Santo importado, com versão em inglês e português d’além mar. Meu S. Jorge de carteirinha universal!
Onde houver exploração, opressão, submissão. Onde houver guerra, onde houver dragão. Lá estará, guerreiro, justiceiro, um Jorge cavaleiro azul de ronda, um santo soldado, um menino destemido, armado até os dentes da coragem dos heróis.
Redivivo Lampião de uma catinga injusta. Pródigo Beato de um já desperançoso sertão.
Já dizia minha avó, mascando um pauzinho de fumo, de cima da sua sabedoria nativa:
- “Só acredito em S. Jorge sem o dragão e com o cavalo com as quatro patas no chão”!!
E tem mais, rebatia meu avô :
- “Só acredito em santo de madeira”!!
Perdoai, meu branco, eles não sabem o que dizem !!!?!!





A CAMPAINHA

Certo dia sem muito que fazer, pus-me a cismar a respeito daquelas pessoas que parecem fazer tudo para não aparecer. Todos nós conhecemos pelo menos uma assim, não é?
Não interessa se apenas são julgadas discretas, apagadas, quietas, tímidas ou maldosamente acusadas de covardes, fracas de ânimo, medrosas, poltronas, moscas-mortas ou até batizadas com nomes complicados como pusilânimes, estóicas, cépticas, ataráxicas.
O que não muda, é que na maioria das vezes, essas pessoas passam desapercebidas durante toda a vida em qualquer grupo ou ambiente, assumindo para sempre o seu papel de zero a esquerda.
Mas, se assim o fazem, por temperamento, necessidade ou opção, o fazem de maneira deliberada e consciente.
No mesmo curso de pensamento incluí a observação de determinados objetos que, não por vontade própria, porque isto eles certamente não têm, passam a ocupar esta galeria de esquecidos, sendo relegados por alguma razão das mentes humanas, à fria obscuridade.
Assim, os sempre ocultos trilhos e roldanas das cortinas, as dobradiças internas das portas, os suportes sob as estantes, as eternas auxiliares arruelas, os embutidos vedantes das torneiras, etc... passam anônimos, até que um belo dia apresentem defeito e só aí tenham o seu dia de glória, embora já velhos e desgastados.
Na prática médica por longos 28 anos, embora exercendo o duro ofício dos ossos, reparo que alguns órgãos do corpo humano também se alinham entre os não eleitos pela nossa desatenta percepção . O baço e o pâncreas, por exemplo, perdem disparadamente em Ibope para o coração, o estômago, a coluna, o cérebro, os pulmões, etc.; também assim, os olvidados ossos do carpo e do tarso são comumente preteridos pelos famigerados, fêmur, rádio, perônio, pela bacia e até pelo cóccix, lembrado mesmo que equivocadamente, como aconteceu recentemente com uma minha paciente que com a mão no pescoço disparou : - Doutor, eu estou com uma dor aqui no cóccix !?!
Muito bem! Mas, o mais esquecido é certamente a úvula!
Do latim, significando “pequeno bago de uva”, a úvula, também conhecida como Campainha pelo seu formato e disposição, fica localizada no fundo da cavidade bucal, limite anterior da buco-faringe, pendente entre as arcadas góticas do istmo das fauces, qual alerta guardiã do véu do paladar. Tem morfologia cônica e consistência mole e mantém-se permanentemente úmida por abrigar pelo menos uma dúzia de glândulas mucosas salivares e sua profusão de canalículos. Funciona como eterna lubrificante do complexo sistema de válvulas e eclusas de que se constitui a garganta.
Não sei se só para provar minha teoria, ela eleva-se e afasta-se do cenário, quando o indivíduo diz Ah! (talvez mais por ordem médica do que por admiração, é certo) e então, modesta, ao apartar-se servilmente, permite que se observe melhor a parede posterior da faringe e as famosas e vaidosas amígdalas.
Mas, é tão grande a discrição desta simples peça anatômica, mera prolongação mucosa do palato mole, que uma rápida enquête entre alguns indivíduos das novas gerações, ou como querem outros, da galera, demonstra completa ignorância a respeito da sua humilde existência: há quem a confunda com óvulo, uva, luva, vulva, lupa e até cúpula (este um mais erudito) !
Na verdade, meus próprios colegas a esquecem: definitivamente não está na mídia médica!
Talvez os Pediatras pela necessidade mais freqüente de examinar a orofaringe tenham a oportunidade de vê-la mais vezes, embora tendam a afasta-la do seu campo visual com as suas indefectíveis paletas, para melhor visualizar as outras estruturas mais importantes. Quão esnobes !!
Com certeza devem lembrar-se até mais dela os cantores, que no afã de conseguir melhor colocação para os seus dotes vocais em frente ao espelho, admirem-na com mais freqüência, perguntem-se a respeito das suas funções e acabem talvez por comentar com seus pares durante as sessões de canto, esperançosos de encontrarem melhoras para as suas performances.
Os dentistas não devem ligar para ela, tão ocupados estão com seus caninos, incisivos e molares, suas cáries, seus roxis, seus implantes e suas pontes.
Também os políticos, que no auge das suas mirabolantes campanhas, conseguem prometer solução para todos os problemas de Saúde e até conseguir curas milagrosas para doenças raras, nada prometem sobre a úvula e nem querem que se refira diminutivamente às suas operações eleitoreiras como campainhas. Temo até que, qualquer dia destes, algum deles, por qualquer motivo escuso, espalhe publicamente uma antiga crença africana de que “a úvula é responsável por todas as moléstias” e queira então patrocinar para seus eleitores, uvulectomias prioritárias, utilizando para isto a máquina pública.
Os botânicos, cultivadores de uvulárias, variedades de gilbardeiras do gênero das Liliaceas da América do Norte, as chamam bislingua, o que a meu ver despersonaliza o nosso já olvidado pingente bucal, em favor da sua vizinha mais meritória.
Enfim, eis uma parte do corpo humano completa e injustamente esquecida, mas que nos permite pela sua capacidade lubrificante: falar, soprar, tragar, deglutir, comer, beber, respirar ou até mesmo cuspir, assobiar, bocejar, espirrar, etc., atividades sem as quais, certamente, a vida seria bem mais difícil.
Moral da história já nossa velha conhecida, mas que continua atravessando os tempos e inconscientemente burlando as nossas boas intenções de justiça e bom-senso.