Meus Ensaios

NO PEITO DOS DESAFINADOS

 

...“ que no peito dos desafinados, também bate um coração”, com esta frase lapidar, o compositor Newton Mendonça inaugurou o movimento artístico, que acabou por tornar-se veículo de uma verdadeira revolução de costumes de uma geração, abrindo as portas para uma expressão autentica e livre na arte musical do nosso País.
A este movimento nacionalista, surgido nos bares e no âmago da família carioca nos idos de 1950 , chamou-se Bossa Nova.
Quem viveu a partir da década de 40, acostumou-se a ouvir nas Rádios e posteriormente na TV, os maiores sucessos da música popular internacional, latina ou não, nos timbres magistrais de nomes como Nat King Cole, Gregório Barrios, Lucio Gatica, Frank Sinatra, Charles Aznavour, além dos clássicos Caruso, Yma Sumac e dos instrumentistas e orquestras, como Billy Vaughan, Paul Mauriat, Liberace e outros.
O Rock n’roll Surgia na Inglaterra e nos EEUU como a música do momento, carregando uma revolução de comportamento de uma juventude desajustada e rebelde, que assim se insurgia contra a ordem mundial.
Na nossa terra não custou a aparecer imitações desta postura político-estética em que música, dança, aparência pessoal e vestuário, compunham o pacote a que se denominou Jovem Guarda
Esta música estrangeira, de excelente qualidade, que preenchia nossos espaços artísticos, entretanto, não atendia as nossas necessidades estéticas, por ser estranha a nossa natureza e a nossa Cultura. Quanto a adaptação que sofreu, sob a forma de Rock brasileiro, nem sempre teve o nível desejado na qualidade das composições, resultando num produto de musicalidade duvidosa.
O sentimento de nacionalidade, que convivia entrincheirado com a maciça influencia estrangeira, no entanto, estruturava-se sorrateiramente entre a juventude universitária e a intelectualidade de então.
Bastou que aparecesse no Rio de Janeiro, o bahiano João Gilberto, com sua voz miúda e seu jeito malemolente, que acompanhava uma “ batida diferente” , para catalizar todo o burburinho que se passava no interior dos bares e apartamentos da zona sul e eclodir o que se chamou de estilo Bossa Nova, que posteriormente ganharia o mundo.
Muitos dos que viveram aquela época não conseguiram perceber, as novas gerações não tiveram a chance de comparar, mas, inegavelmente, a Bossa Nova propôs uma transformação nos terrenos do ritmo, da melodia, da harmonia, da literatura do comportamento e da postura cênica e vocal.
Neste sentido, foi uma Revolução e como revolução, apesar de extremamente pacifica e delicada, foi muito efetiva contra a agressiva e selvagem exploração do mercado fonográfico nacional, impondo uma alta qualidade musical, a ponto de, posteriormente, conseguir a aprovação de leis que regulamentavam a publicação da música estrangeira e facultando a abertura de emissoras exclusivas para a divulgação da então denominada MPB.
A MPB, Música Popular Brasileira, filha natural da Bossa Nova, recuperada e reforçada, promoveu Festivais, inseriu-se profundamente no mercado discogáfico, insinuou-se nas peças teatrais e acabou por atravessar fronteiras, espalhando-se por todo o mundo, sempre reconhecida como música de primeira qualidade.
Ritmicamente a Bossa Nova, no parecer de especialistas, é um samba. Um samba que teve seu ritmo sutilmente modificado por um recurso denominado síncope. A síncope na Bossa Nova , que confere um balanço diferente ao ritmo, é tecnicamente o prolongamento do 2º tempo rítmico do compasso, em detrimento do tempo seguinte.
A similaridade com o Jazz, decorre também deste expediente rítmico, daí ter sido a Bossa Nova comparada com este ritmo originalmente americano e que tornou-se mundial.
Por outro lado, a música tradicional, costumava ser melodicamente muito previsível. Ao iniciar-se uma frase musical , mesmo o ouvinte comum, com pequena margem de erro, poderia, na maioria dos casos, imaginar sua resolução melódica. Os compassos seguiam-se, sempre previsivelmente, apoiados por uma base harmônica de acordes fundamentais, dando ao final a sensação da música que se acostumou a chamar de “quadrada”.
Diferentemente, a Bossa Nova trouxe no bojo do seu Movimento e legou para a futura MPB, uma nova realidade : linhas melódicas extremamente surpreendentes e cuidadosamente construídas, tornando sofisticadas e ricas as canções.
A Harmonia também encheu-se de acordes dissonantes, que são, musicalmente, a inserção de notas estranhas aos acordes fundamentais naquela tonalidade. O efeito causado na música pelo uso destes acordes modificados é de modernidade e sofisticação, surpreendendo e agradando a todos e aos ouvidos mais exigentes.
No aspecto literário inaugurou-se também uma nova e ampla era. As letras de música, antes tão pobres ou desprovidas de criatividade (salvo honrosas exceções), ganharam as belas vestimentas das metáforas, do jogo de palavras foneticamente parecidas, dos trocadilhos ou da inserção de elementos impressionistas ou concretistas, enriquecendo sobremaneira os poemas musicados.
Passou-se a ouvir e cantar textos como “ há se eu pudesse te mostrar as flores/ que cantam suas cores na manhã que nasce”, “ pisando nisto tudo que se fez canção”, fotografei você na minha Rolley-flex,/ revelou-se a sua enorme ingratidão”, “é sol, é sal, é sul”, etc. dando uma roupagem nova as desgastadas letras em Português ou nas versões da música estrangeira, na época, tão comuns.
Tudo isto ainda não é tudo, quando o cantor, que comumente era o próprio compositor, (também contrariando a realidade anterior), apresentava no palco, em interpretação intimista, como se estivesse em sua própria casa, a sua canção.
O vozeirão, antes predicado obrigatório para qualquer apresentação, deu lugar a verdadeiros “fios de voz”, desafinadas ou não, decodificando a mensagem de que mais valia a essência do que estava sendo apresentado, do que a roupagem de que se revestia a apresentação.
O termo “bossa”, já usado pelos músicos para definir alguém que cantasse ou tocasse diferente, estava longe longe de ser novo. Dizia-se de Cyro Monteiro, cantor aparecido antes desta época, ter bossa. Noel Rosa já o usara em um samba de 1932 : “ o samba, a prontidão e outras bossas / são nossas coisas / são coisas nossas”. Nos anos 40 o violonista Garoto liderou um conjunto chamado “Clube da Bossa”. O termo Bossa Nova usado por Moysés Fucs, editor do tablóide UH ( Última Hora) para apresentar um Show do novo gênero a par de um aviso num quadro negro do Grupo Hebraico onde se lia “ Hoje, Silvinha Telles e um grupo bossa nova” talvez fossem as primeiras manifestações no sentido de definir este fenômeno. Entretanto ainda é polemico o real batismo do novo movimento, desde quando o termo , até então, era usado mais como adjetivo do que como definição ou denominação do gênero insurgente.
Não obstante a origem do nome, o novo gênero musical, assim apresentado, não se prestava para aparecimentos diante de multidões. Era um gênero doméstico, próprio das turmas das esquinas, dos apartamentos, dos pequenos bares e teatros de arena, como era tão comum naquela época.
Seus atores, jovens tímidos e introvertidos, cuja competência estava na intimidade com que tratavam os seus instrumentos e construíam as suas lindas canções, não almejavam “estourar” em nenhum mercado.
No entanto, seus produtos ganharam os ouvidos e corações do seu povo, foram imitados e multiplicados pela juventude de todos os recantos da sua terra, modificaram ou enriqueceram varias modalidades e concepções da arte e imprimiram um real sentido nacionalista a cultura popular do seu País, projetando em todo o mundo uma imagem positiva e rica das suas possibilidades.
Dentre estes pioneiros , além dos já citados Newton Mendonça e João Gilberto, surgem os nomes de compositores, arranjadores, cantores e bandas , na época chamadas apenas de conjuntos, como : Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Roberto Menescal, Ronaldo Boscoli, Carlos Lyra, Luis Bonfá, Johnny Alf, Leni Andrade, Wanda Sá, Célia Vaz, Nara Leão, João Donato, Os Cariocas, Tamba Trio, Rogério Duprat, Baden Powell, Milton Banana Trio, Zimbo Trio, Marcos e Paulo Sérgio Valle e outros , muitos outros, a quem muito deve a música brasileira.
A atual Música Popular Brasileira, herdeira dos vários movimentos a que tornou possível a Bossa Nova, é hoje um produto de alta qualidade e traz na sua estrutura os elementos de flexibilidade e capacidade adaptativa que a torna ricamente mutável e potencialmente eterna.


TEMPO DA DELICADEZA





O tempo da delicadeza na verdade não tem tempo. Melhor dizendo, nunca existiu temporalmente tal tempo. Nunca existiu historicamente, época em que os homens fossem delicados, em que a delicadeza fosse a tônica do tecido social ou onde se cultuasse, como regra, a finura do ser e do viver.

Ao contrario, em todos os tempos existiram homens dispostos a comportarem-se delicadamente, porque a delicadeza parece ser inerente à índole humana, assim como a disposição para a guerra ou a tendência à exploração do seu ambiente e do mundo que o cerca.

Quando os primitivos homens agacharam-se em torno das primitivas fogueiras não sabemos com que primitivas intenções, certamente intentaram primitivas atitudes de delicadeza.

Assim, parece que a condição única para que se pratique a delicadeza seja a existência compartilhada do semelhante. Sem ela o ato perde-se no tempo e no espaço e desaparece no mais profundo das intenções.

As primeiras associações ou organizações humanas certamente sofreram enormes prejuízos neste sentido, por conta da inexperiência e vaidades explicitas dos seus atores. Vencidas as primeiras dificuldades, entretanto, estruturaram-se em grupos formais e organizados.

Hoje, os homens se divertem em sofisticados clubes de bridge, gourmets e sommeliers deliciam-se em finas confrarias, maçons e rosacruzes reúnem-se em herméticas organizações, grupos de leitura dedicam-se a estudos transcendentais, arcádias poéticas e academias incumbem-se da aproximação dos literatos, enquanto leões e cavaleiros de todas as ordens somam seus esforços em prol da “humanidade”, procurando todos, desenvolver aquela intenção inicial do encontro e do associativismo, tão inerentes a sua natureza.

Assim buscam os homens polirem suas cruas arestas de animal pré-histórico, ajuntando-se, agrupando-se ou associando-se de acordos com seus desejos propulsores.

Assim agregam-se os homens, no intuito de consumir suas energias e esgotar o que sobrou do big bang inicial.

Entretanto, atentem os mais sagazes, não necessariamente serão estes, os homens delicados, não necessariamente se apure nestes ajuntamentos o espírito da delicadeza.

Questionariam os mais apressados ou os mais céticos: mas, que estória de delicadeza é esta? De que consiste o tal espírito?

Lamento desapontar esta expectativa que se insinua naturalmente nas mentes cartesianas, acostumadas ao ver-prá-crer do modelo cientifico. Não existe definição ou postulado. Não existem regras ou estatutos. Sequer um teorema capaz de verificar; nenhum sensível equipamento que possa detectar o menor sinal do homem delicado.

Volátil, sutil, pouco palpável. Assim a delicadeza permeia a alma do homem, marca delicadamente a sua atitude, influencia levemente o seu gosto e as suas palavras.

Não há carimbo a carimbar. Não se prensam lacres com brasões. Não se imprimem carteiras ou certificados.

Não há diferença palpável. O homem delicado tem a aparência comum. Como todos os outros foi criado em meio à turbulência dos valores e princípios. Experimentou o doce e o amargor das ideologias e a frieza enregelante dos dogmas. Submeteu-se às diversas interferências que assaltaram o desenvolvimento humano, como a grosseira repressão da energia sexual, que violentou e desvirtuou a sua propulsão natural em busca da produtividade e felicidade.

Apesar de tudo, a delicadeza, driblando a agruras do caminho, apenas tomando-as como referencias não-válidas, enfim se modela, mesmo que um tanto amorfamente, e passeia sutil e descontraidamente o íntimo mais íntimo do homem delicado, deixando-se entrever tão somente na mágica de um olhar, na asa de uma palavra ou na simpatia de um gesto casual.

O homem delicado não porta crachá. Deixa transparecer sua identidade de maneira tão sutil, que o seu interlocutor ou simples observador, diante de um ato ou palavra delicada, apenas sente que algo especial aconteceu, que algo inusitado, que algo tão incomum foi percebido, que simplesmente imprimiu o instante e o ambiente de uma sensação de plenitude e completamento, apenas compatível com as maiores promessas ou sonhos das atuais utopias.

O ato delicado pode brotar do aparente brutamontes, assim como do mais cavalheiro dos homens. Do mais grosseiro, como do mais educado; do mais truculento, como do mais pacifico; do mais rude, como do mais polido; do mais tosco, como do mais esmerado.

A delicadeza não tem pátria, não demarca território, não constrói fronteiras, não acentua sotaque. É livre o seu arbítrio, assim como espontânea a sua expressão.

Ambos os sexos a praticam. Tem todas as cores e todas as raças. Não há clima mais propicio ou estação mais acertada. Não há data. Não há hora. Não há lugar.

O instante, talvez o instante, com sua natureza fugaz e impalpável, com seu caráter pragmático de presente, situado perigosamente entre o passado e o futuro, por sua vez tão delicado e efêmero, tão dificilmente demarcável e tão surpreendentemente ultrapassável, seja enfim, a chave do momento delicado.

Não importa o ator, não importa a intenção do ator, não importa a consciência e a capacidade do ator, nem sua rapidez e habilidade.

Como uma faísca, uma breve centelha, inesperada e inédita, surge o ato delicado, iluminando subitamente o instante e imprimindo indelevelmente o momento e o cenário, com a marca transitória e eterna da brandura e da leveza.